A princípio ela pensa ser um monstro, porque Guy (esse é o
nome do cara) está usando uma carcaça de javali como... como... ahn... adereço.
Andar por aí com uma cabeça de javali na testa não é algo que um cara faz à toa, há um motivo para isso.
Na tribo dele, Guy seria um xamã.
Os xamãs também podiam ser guerreiros, mas não eram necessariamente os guerreiros mais fortes. Em compensação, podiam dar apoio moral 'incorporando' o espírito do animal protetor da tribo.
Durante uma batalha, elevar o moral dos companheiros e causar pânico na tribo inimiga era valioso para o esforço de guerra. E se você parecesse alguém possuído por entidades do outro mundo, isso abalava psicologicamente o inimigo. Choque e terror são uma técnica e doutrina militar muito antiga.
Em
muitas sociedades primitivas, a tarefa de comunicação com o além era (e ainda é) cumprida por
andróginos ou transgêneros; sua facilidade de alternar entre um gênero e outro
seria demonstrativa de sua facilidade de passar deste mundo para o outro,
desconhecido e cheio de mistérios que só o xamã entendia.
Tumba de xamã com esqueleto aparentemente feminino, mas que o DNA mostrou ser um homem. |
Na pré-história, os xamãs tinham a exclusividade do contato com
os deuses e, no início da dominação do fogo, eram os responsáveis por conservar
uma chama acesa, dia e noite, com chuva, neve ou ventania.
Por isso essa chama era sagrada, ninguém podia bulir com ela. Dela dependia a sobrevivência da tribo para enfrentar os animais selvagens e os rigores do clima, além de assar os vegetais (ainda não havia panelas) para possibilitar sua ingestão.
Há uma passagem bíblica onde Javé fulmina os dois filhos de um sacerdote porque acenderam os incensórios da tribo.
Por isso essa chama era sagrada, ninguém podia bulir com ela. Dela dependia a sobrevivência da tribo para enfrentar os animais selvagens e os rigores do clima, além de assar os vegetais (ainda não havia panelas) para possibilitar sua ingestão.
Há uma passagem bíblica onde Javé fulmina os dois filhos de um sacerdote porque acenderam os incensórios da tribo.
Matar o irmão pode, acender foguinho não pode. |
Essa associação entre o fogo sagrado e os xamãs/sacerdotes
não foi diminuída nem com o passar de gerações e o domínio de técnicas que
permitiram acender o fogo com maior facilidade.
Até hoje existem sociedades onde é necessária a presença de
um xamã/sacerdote para encontrar aviões desaparecidos ou cuidar do fogo para o preparo das refeições, e não
estou falando de tribos perdidas nas selvas da Papua Nova Guiné.
As refeições kosher do povo hebreu são preparadas de acordo
com as tradições ditadas por Moisés na Idade do Bronze: o sacerdote acende a
chama e ninguém pode alterar sua intensidade, exceto o rabino. É sério.
Para os xamãs/sacerdotes, não somente o fogo tinha esse papel
relevante, mas outros fenômenos impressionantes da Natureza também pautavam a
conduta de povos pré-históricos e também de civilizações modernas.
O pôr do sol é uma hora sagrada para diversas religiões,
porque.... porque... ué, o Sol morre no horizonte, quem garante que ele vai nascer
de novo? Por via das dúvidas, melhor rezar, senão...
Se a preparação de uma refeição kosher ultrapassar o horário
do pôr do sol cronometrado pelo rabino, todo o lote de comida será descartado. É
sério.
Mesmo em sociedades mais evoluídas (da Idade do Ferro), o
fogo continuou a representar um papel importante em todas as religiões de todos
os povos. Os romanos mantinham sua chama doméstica sempre acesa em seus lares. Mas para eles um lar ainda não era um lar como o
entendemos hoje.
Lar era a
divindade doméstica que protegia aquela família, e uma chama era mantida acesa
em sua honra. E também era muito útil para acender o fogão a lenha nas horas de
necessidade.
Daí veio nossa palavra lar (no sentido de residência). E da palavra lararium, o local de veneração do lar, veio a lareira. E também as capelinhas com imagens de santinhos até hoje reverenciadas pelas vovós.
Com a invenção da vela de parafina, ficou mais fácil manter
os lares acesos e os templos passaram
a ter um excelente produto consumível para sustentar a devoção e as despesas
paroquiais.
Você já parou para pensar o que é uma lamparina ou uma vela?
Basicamente, é um barbante envolvido em óleo ou parafina que
demora a se queimar. As fibras do pavio sugam permanentemente o óleo/parafina/gordura
derretida, e são essas substâncias ricas em hidrocarbonetos que se vaporizam e
queimam, minimizando (mas não impedindo) o consumo do pavio em si.
E é aí que vem a parte interessante: Por milênios, o principal material usado para os pavios de lamparinas e velas foi o cânhamo.
O cânhamo é uma fibra natural muito resistente e praticamente pronta para uso, basta arrancar as folhas e trançar vários caules; cabos de cânhamo eram usados como o cordame dos navios e pavios de cânhamo serviam para a confecção de velas e mantinham as lamparinas acesas.
Uma particularidade desconhecida na época é que o cânhamo é um material muito rico em canabinoides, substâncias que ao serem inaladas e entrarem na corrente sanguínea provocam estados de torpor e alucinações. Também conhecidos como êxtases místicos.
Uma particularidade desconhecida na época é que o cânhamo é um material muito rico em canabinoides, substâncias que ao serem inaladas e entrarem na corrente sanguínea provocam estados de torpor e alucinações. Também conhecidos como êxtases místicos.
Minha teoria é que durante milênios os xamãs/sacerdotes portadores da chama e das ervas sagradas permaneceram em ambientes ricos em fumaça de cânhamo e outros aparentados.
Muito da literatura fantástica da Antiguidade foi escrita por
xamãs/sacerdotes e copiada por escribas que não estavam no perfeito domínio de
si mesmos.
Seres fantásticos das mitologias da Suméria, Babilônia,
Pérsia, China, Índia, Maias, Astecas, Incas, coloque aqui ______________ o povo
que você quiser, foram descritos e perpetuados por gerações e gerações de
xamãs/sacerdotes que viajavam em ideias delirantes “sopradas pelo(s) deus(es)”.
As pessoas em suas casas também inalavam uma pequena quantia de fumaça de cânhamo, mas nem se comparava aos palácios e templos , onde essa fumaça ardia em quantidades industriais para iluminar o ambiente e agradar ao(s) deus(es)... um efeito colateral era o êxtase experimentado pelos frequentadores em transe.
Foi nesses ambientes enfumaçados dos palácios e templos que
foram gestados conceitos teológicos absurdos, mal entendidos, guerras e
perseguições religiosas que atravessaram os milênios e levaram milhões e
milhões de seres humanos à loucura e à morte.
Sonhos delirantes foram interpretados como profecias e mensagens de Deus em pessoa.
A mensagem misteriosa era difícil de interpretar, e não faltaram sacerdotes se prontificando a traduzir as "mensagens" à sua maneira para arrebatar mais fiéis e angariar mais tesouros para a "glória do Senhor".
Sonhos delirantes foram interpretados como profecias e mensagens de Deus em pessoa.
A mensagem misteriosa era difícil de interpretar, e não faltaram sacerdotes se prontificando a traduzir as "mensagens" à sua maneira para arrebatar mais fiéis e angariar mais tesouros para a "glória do Senhor".
Deu no que deu.
Gerações e gerações apavoradas aguardaram o apocalipse, quando as estrelas cairiam do céu (como se isso fosse possível) e bestas de 7 cabeças andariam pela terra (como se isso fosse possível).
Pensar que o Sol poderia parar de girar em torno da Terra para que uma tribo ganhasse uma batalha, ou que as estrelas pudessem se desprender do céu e cair sobre nossas cabeças é consequência da visão de mundo restrita dos povos de então.
Mesmo o Sol era visto como algo que teria no máximo o tamanho de uma montanha...
Como explicar que a proporção das maiores estrelas em relação à Terra seria a de umabola de basquete bexiga de boi estufada para algo menor do que um grão de areia, e que elas estão a distâncias de sagans de sagans* de quilômetros daqui?
Mas a petrificação de crenças pré-históricas com o rótulo de sagrada palavra de Deus se tornou inconciliável com o avanço do conhecimento científico.
O que se faz quando há conflito entre Ciência e Religião?
Mata-se os cientistas, com a bênção divina.
Isso acontece até hoje, é só ler os jornais.
E pensar que tudo começou com carinhas bem intencionados como esse aí...
Gerações e gerações apavoradas aguardaram o apocalipse, quando as estrelas cairiam do céu (como se isso fosse possível) e bestas de 7 cabeças andariam pela terra (como se isso fosse possível).
Pensar que o Sol poderia parar de girar em torno da Terra para que uma tribo ganhasse uma batalha, ou que as estrelas pudessem se desprender do céu e cair sobre nossas cabeças é consequência da visão de mundo restrita dos povos de então.
Mesmo o Sol era visto como algo que teria no máximo o tamanho de uma montanha...
Como explicar que a proporção das maiores estrelas em relação à Terra seria a de uma
Mas a petrificação de crenças pré-históricas com o rótulo de sagrada palavra de Deus se tornou inconciliável com o avanço do conhecimento científico.
O que se faz quando há conflito entre Ciência e Religião?
Mata-se os cientistas, com a bênção divina.
Isso acontece até hoje, é só ler os jornais.
E pensar que tudo começou com carinhas bem intencionados como esse aí...
Preciso dizer mais alguma coisa?
Um abraço,
*: Um sagan é uma unidade de medida equivalente a "bilhões e bilhões". Piada de astrônomos.
Créditos das imagens / Para saber mais:
Croods: DreamWorks Animation
Mitos nórdicos: http://weeklynorsemyths.wordpress.com/2013/06/06/shamanism-and-norse-mythology/
Shaman andrógino: http://blog.prehistoricshamanism.com/519/the-grave-of-a-sarmatian-shaman/
Levítico 10: http://www.thebricktestament.com/the_wilderness/god_kills_aarons_sons/lv10_01a.html
Bomoh malásio: Lai Seng Sin/AP http://www.nydailynews.com/news/world/malaysia-recruits-witch-doctors-find-missing-passenger-jet-article-1.1720770
Levítico 10: http://www.thebricktestament.com/the_wilderness/god_kills_aarons_sons/lv10_01a.html
Bomoh malásio: Lai Seng Sin/AP http://www.nydailynews.com/news/world/malaysia-recruits-witch-doctors-find-missing-passenger-jet-article-1.1720770
Dragão: http://reelclub.wordpress.com/2012/09/30/no-longer-blinded-by-the-light-the-supernatural-in-dolores-claiborne/
Lararium: http://www.ancientvine.com/lar73.html
Capelinha: http://carolinatrabalhos.blogspot.com.br/2009/11/oratorio-nossa-senhora-aparecida.html
Lamparina: http://en.wikipedia.org/wiki/Oil_lamp
Lararium: http://www.ancientvine.com/lar73.html
Capelinha: http://carolinatrabalhos.blogspot.com.br/2009/11/oratorio-nossa-senhora-aparecida.html
Lamparina: http://en.wikipedia.org/wiki/Oil_lamp
Iluminura: http://anthologio.wordpress.com/2013/05/25/illuminated-manuscripts-making-a-manuscript-or-scribes-artists-paint-themselves/
Serafim: http://pt.wikipedia.org/wiki/Serafim
Ishtar: http://en.wikipedia.org/wiki/Ishtar
Ravana: http://en.wikipedia.org/wiki/Ravana
Divindade asteca: http://en.wikipedia.org/wiki/Tezcatlipoca
Ravana: http://en.wikipedia.org/wiki/Ravana
Divindade asteca: http://en.wikipedia.org/wiki/Tezcatlipoca
Dragões: http://en.wikipedia.org/wiki/LGBT_themes_in_mythology
Igreja em festa: http://www.haaretz.com/print-edition/news/police-firepower-safeguards-holy-fire-in-jerusalem-as-orthodox-christians-celebrate-annual-miracle-1.357804
Apocalipse: http://en.wikipedia.org/wiki/Book_of_Revelation
Igreja em festa: http://www.haaretz.com/print-edition/news/police-firepower-safeguards-holy-fire-in-jerusalem-as-orthodox-christians-celebrate-annual-miracle-1.357804
Apocalipse: http://en.wikipedia.org/wiki/Book_of_Revelation
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