quinta-feira, 3 de abril de 2014

12. Guy, o xamã

Chegando à fonte da luz misteriosa, Eep encontra algo inesperado; um humano diferente de todos os outros neandertais seus conhecidos.

A princípio ela pensa ser um monstro, porque Guy (esse é o nome do cara) está usando uma carcaça de javali como... como... ahn... adereço.

Andar por aí com uma cabeça de javali na testa não é algo que um cara faz à toa, há um motivo para isso.


Na tribo dele, Guy seria um xamã.

Os xamãs também podiam ser guerreiros, mas não eram necessariamente os guerreiros mais fortes. Em compensação, podiam dar apoio moral 'incorporando' o espírito do animal protetor da tribo.


Durante uma batalha, elevar o moral dos companheiros e causar pânico na tribo inimiga era valioso para o esforço de guerra. E se você parecesse alguém possuído por entidades do outro mundo, isso abalava psicologicamente o inimigo. Choque e terror são uma técnica e doutrina militar muito antiga.

Em muitas sociedades primitivas, a tarefa de comunicação com o além era (e ainda é) cumprida por andróginos ou transgêneros; sua facilidade de alternar entre um gênero e outro seria demonstrativa de sua facilidade de passar deste mundo para o outro, desconhecido e cheio de mistérios que só o xamã entendia.

Tumba de xamã com esqueleto aparentemente feminino, mas que o DNA mostrou ser um homem.
Exemplos dessa atribuição vinculada ao (trans)gênero são encontrados em culturas tão distantes quanto a de nossos pajés pré-cabralinos e os xamãs tailandeses. E o espalhafato da indumentária dos xamãs tem a função de exteriorizar a complexidade dos mistérios ‘divinos’ que somente eles sabem interpretar.

Na pré-história, os xamãs tinham a exclusividade do contato com os deuses e, no início da dominação do fogo, eram os responsáveis por conservar uma chama acesa, dia e noite, com chuva, neve ou ventania. 

Por isso essa chama era sagrada, ninguém podia bulir com ela. Dela dependia a sobrevivência da tribo para enfrentar os animais selvagens e os rigores do clima, além de assar os vegetais (ainda não havia panelas) para possibilitar sua ingestão.

Há uma passagem bíblica onde Javé fulmina os dois filhos de um sacerdote porque acenderam os incensórios da tribo.

Matar o irmão pode, acender foguinho não pode.
Essa é uma reminiscência de eras muito antigas, perdidas na noite dos tempos. Nos primórdios, a dificuldade de fazer fogo era grande, e havia um esforço enorme para não deixar a chama sagrada se apagar. Ai de quem brincasse com o fogo...

Essa associação entre o fogo sagrado e os xamãs/sacerdotes não foi diminuída nem com o passar de gerações e o domínio de técnicas que permitiram acender o fogo com maior facilidade.


Até hoje existem sociedades onde é necessária a presença de um xamã/sacerdote para encontrar aviões desaparecidos ou cuidar do fogo para o preparo das refeições, e não estou falando de tribos perdidas nas selvas da Papua Nova Guiné.

As refeições kosher do povo hebreu são preparadas de acordo com as tradições ditadas por Moisés na Idade do Bronze: o sacerdote acende a chama e ninguém pode alterar sua intensidade, exceto o rabino. É sério.


Para os xamãs/sacerdotes, não somente o fogo tinha esse papel relevante, mas outros fenômenos impressionantes da Natureza também pautavam a conduta de povos pré-históricos e também de civilizações modernas.

O pôr do sol é uma hora sagrada para diversas religiões, porque.... porque... ué, o Sol morre no horizonte, quem garante que ele vai nascer de novo? Por via das dúvidas, melhor rezar, senão...


Se a preparação de uma refeição kosher ultrapassar o horário do pôr do sol cronometrado pelo rabino, todo o lote de comida será descartado. É sério.

Mesmo em sociedades mais evoluídas (da Idade do Ferro), o fogo continuou a representar um papel importante em todas as religiões de todos os povos. Os romanos mantinham sua chama doméstica sempre acesa em seus lares. Mas para eles um lar ainda não era um lar como o entendemos hoje.


Lar era a divindade doméstica que protegia aquela família, e uma chama era mantida acesa em sua honra. E também era muito útil para acender o fogão a lenha nas horas de necessidade.

Daí veio nossa palavra lar (no sentido de residência). E da palavra lararium, o local de veneração do lar, veio a lareira. E também as capelinhas com imagens de santinhos até hoje reverenciadas pelas vovós.



Com a invenção da vela de parafina, ficou mais fácil manter os lares acesos e os templos passaram a ter um excelente produto consumível para sustentar a devoção e as despesas paroquiais.

Você já parou para pensar o que é uma lamparina ou uma vela?


Basicamente, é um barbante envolvido em óleo ou parafina que demora a se queimar. As fibras do pavio sugam permanentemente o óleo/parafina/gordura derretida, e são essas substâncias ricas em hidrocarbonetos que se vaporizam e queimam, minimizando (mas não impedindo) o consumo do pavio em si.

E é aí que vem a parte interessante: Por milênios, o principal material usado para os pavios de lamparinas e velas foi o cânhamo.




O cânhamo é uma fibra natural muito resistente e praticamente pronta para uso, basta arrancar as folhas e trançar vários caules; cabos de cânhamo eram usados como o cordame dos navios e pavios de cânhamo serviam para a confecção de velas e mantinham as lamparinas acesas.



Uma particularidade desconhecida na época é que o cânhamo é um material muito rico em canabinoides, substâncias que ao serem inaladas e entrarem na corrente sanguínea provocam estados de torpor e alucinações. Também conhecidos como êxtases místicos.


O motivo disso é que o cânhamo de alto teor de canabinoides é mais conhecido pelo nome de maconha, marijuana ou erva-do-diabo.


Minha teoria é que durante milênios os xamãs/sacerdotes portadores da chama e das ervas sagradas permaneceram em ambientes ricos em fumaça de cânhamo e outros aparentados.



Muito da literatura fantástica da Antiguidade foi escrita por xamãs/sacerdotes e copiada por escribas que não estavam no perfeito domínio de si mesmos.



Seres fantásticos das mitologias da Suméria, Babilônia, Pérsia, China, Índia, Maias, Astecas, Incas, coloque aqui ______________ o povo que você quiser, foram descritos e perpetuados por gerações e gerações de xamãs/sacerdotes que viajavam em ideias delirantes “sopradas pelo(s) deus(es)”.


As pessoas em suas casas também inalavam uma pequena quantia de fumaça de cânhamo, mas nem se comparava aos palácios e templos , onde essa fumaça ardia em quantidades industriais para iluminar o ambiente e agradar ao(s) deus(es)... um efeito colateral era o êxtase experimentado pelos frequentadores em transe.


Foi nesses ambientes enfumaçados dos palácios e templos que foram gestados conceitos teológicos absurdos, mal entendidos, guerras e perseguições religiosas que atravessaram os milênios e levaram milhões e milhões de seres humanos à loucura e à morte.



Sonhos delirantes foram interpretados como profecias e mensagens de Deus em pessoa. 

A mensagem misteriosa era difícil de interpretar, e não faltaram sacerdotes se prontificando a traduzir as "mensagens" à sua maneira para arrebatar mais fiéis e angariar mais tesouros para a "glória do Senhor".



Deu no que deu.

Gerações e gerações apavoradas aguardaram o apocalipse, quando as estrelas cairiam do céu (como se isso fosse possível) e bestas de 7 cabeças andariam pela terra (como se isso fosse possível).

Pensar que o Sol poderia parar de girar em torno da Terra para que uma tribo ganhasse uma batalha, ou que as estrelas pudessem se desprender do céu e cair sobre nossas cabeças é consequência da visão de mundo restrita dos povos de então.

Mesmo o Sol era visto como algo que teria no máximo o tamanho de uma montanha...

Como explicar que a proporção das maiores estrelas em relação à Terra seria a de uma bola de basquete bexiga de boi estufada para algo menor do que um grão de areia, e que elas estão a distâncias de sagans de sagans* de quilômetros daqui? 

Mas a petrificação de crenças pré-históricas com o rótulo de sagrada palavra de Deus se tornou inconciliável com o avanço do conhecimento científico.

O que se faz quando há conflito entre Ciência e Religião? 

Mata-se os cientistas, com a bênção divina.

Isso acontece até hoje, é só ler os jornais.

E pensar que tudo começou com carinhas bem intencionados como esse aí...


Preciso dizer mais alguma coisa?

Um abraço,

Jeff
*: Um sagan é uma unidade de medida equivalente a "bilhões e bilhões". Piada de astrônomos.

Créditos das imagens / Para saber mais:
Croods: DreamWorks Animation
Mitos nórdicos: http://weeklynorsemyths.wordpress.com/2013/06/06/shamanism-and-norse-mythology/
Shaman andrógino: http://blog.prehistoricshamanism.com/519/the-grave-of-a-sarmatian-shaman/
Levítico 10: http://www.thebricktestament.com/the_wilderness/god_kills_aarons_sons/lv10_01a.html
Bomoh malásio: Lai Seng Sin/AP http://www.nydailynews.com/news/world/malaysia-recruits-witch-doctors-find-missing-passenger-jet-article-1.1720770
Dragão: http://reelclub.wordpress.com/2012/09/30/no-longer-blinded-by-the-light-the-supernatural-in-dolores-claiborne/
Lararium: http://www.ancientvine.com/lar73.html
Capelinha: http://carolinatrabalhos.blogspot.com.br/2009/11/oratorio-nossa-senhora-aparecida.html
Lamparina: http://en.wikipedia.org/wiki/Oil_lamp
Iluminura: http://anthologio.wordpress.com/2013/05/25/illuminated-manuscripts-making-a-manuscript-or-scribes-artists-paint-themselves/
Serafim: http://pt.wikipedia.org/wiki/Serafim
Ishtar: http://en.wikipedia.org/wiki/Ishtar
Ravana: http://en.wikipedia.org/wiki/Ravana
Divindade asteca: http://en.wikipedia.org/wiki/Tezcatlipoca
Dragões: http://en.wikipedia.org/wiki/LGBT_themes_in_mythology
Igreja em festa: http://www.haaretz.com/print-edition/news/police-firepower-safeguards-holy-fire-in-jerusalem-as-orthodox-christians-celebrate-annual-miracle-1.357804
Apocalipse: http://en.wikipedia.org/wiki/Book_of_Revelation

Nenhum comentário:

Postar um comentário