quinta-feira, 10 de abril de 2014

13. O medo do novo

Quando Eep volta de sua busca pela luz, traz consigo uma novidade: uma concha que permite chamar Guy, o primeiro celular da história.

A reação dos Croods à novidade é de horror; afinal, isso vai contra a crença dogmática de gerações e gerações de seus antepassados: "tudo que é novo é perigoso".



Os familiares de Eep agem como uma turba enfurecida e destroem aquilo que ela considerava a coisa mais bela que já tinha visto, da concha sobram apenas os cacos (conchas não faziam parte do mundo conhecido por Eep).

Infelizmente, muitos episódios como esse aconteceram ao longo da História da humanidade, e continuam acontecendo, vemos todos os dias nos jornais.

O preconceito e a intolerância sobrevivem impedindo que as pessoas conheçam novidades; o que garante a sobrevivência dos xamãs/sacerdotes/chefetes guerreiros é o poder tirânico exercido sobre o povo, e se o povo tiver acesso a novidades que os façam pensar fora de seu mundinho limitado, o esquema de dominação estará ameaçado.


O exemplo mais concreto desse tipo de atitude é a destruição das estátuas de Buda no Afeganistão. E os atentados contra escolas que ensinem qualquer coisa além do Corão. 

Esses budas não foram o único patrimônio da Humanidade destruído por intolerância. A bola da vez está rolando em Timbuktu, na África, onde templos milenares estão sendo vandalizados porque assim determina o livro sagrado dos muçulmanos baseado no livro sagrado dos hebreus, hebreus criticados porque não reconheceram o profeta Jesus (aquele mesmo Jesus do livro sagrado dos cristãos).

Sim, concordo, não faz o menor sentido. 

Talvez o maior de todos os patrimônios destruídos tenha sido a Biblioteca de Alexandria, construída com o objetivo de guardar todos os livros pergaminhos e papiros com todo o conhecimento do mundo antigo.

Essa biblioteca foi destruída várias vezes. A guerra pela conquista romana do Egito causou um incêndio devastador; mesmo assim, os textos que sobraram ainda a mantiveram funcionando por centenas de anos.


Há uma versão de que a última destruição ocorreu nos anos 700 por ordem de um califa logo após a criação do Islã com o seguinte argumento ‘lógico’:

Se esses livros estiverem de acordo com o Corão, então não precisamos deles para nada; e se eles se opõem ao Corão, destrua-os.

Foram necessários seis meses para queimar todo o conhecimento acumulado que ainda restava do mundo antigo.

Livros persas foram destruídos no Irã, livros judaicos foram destruídos por toda a área de influência islâmica...

Mas voltemos à segunda e mais dramática destruição da biblioteca de Alexandria, tema da postagem de hoje:


Criada pelos gregos após a dominação do Egito por Alexandre, o Grande, a Biblioteca de Alexandria era ponto de encontro de pesquisadores de todo o mundo; Alexandria era sede de várias escolas filosóficas.

Nesse ambiente intelectual, eram discutidas e analisados os pilares da Ciência em um mundo que se polarizava em torno de uma nova religião; os cristãos impunham sua doutrina de amor ao próximo expulsando os judeus e perseguindo os pagãos.
  
Filosofia não era vista com bons olhos pelos cristãos, que consideravam tudo coisa do demônio, como fazem hoje os televangelistas que veem o diabo até em pote de maionese.


Alguns historiadores consideram o fim da biblioteca de Alexandria como o marco do fim da Antiguidade clássica.

Outros consideram que esse marco foi o assassinato de Hipátia, a diretora da biblioteca, por uma turba de cristãos enfurecidos em 415 d.C.

Isso foi logo antes do fim da biblioteca, quando o preconceito religioso ordenou que todos os textos não cristãos fossem queimados, porque o novo livro sagrado baseado no livro sagrado dos hebreus continha todas as respostas.

Mas quem foi Hipátia?

Você nunca ouviu falar dela, mas provavelmente ouviu falar de Santa Catarina. 

Santa Catarina de Alexandria foi uma mártir cristã muito venerada durante a Idade Média.

Catarina era uma princesa por quem o imperador romano caiu de paixão.

Mas Catarina já havia sido transportada aos céus onde havia se casado misticamente com Jesus, e não queria nada com o imperador. 

O imperador insistiu e insistiu, até que Catarina propôs um concurso: ela debateria com 50 sábios indicados pelo imperador, e se não conseguisse provar que ser cristã era a coisa certa a ser feita, ela se casaria com ele.

Catarina debateu e converteu os 50 sábios pagãos do imperador, que enfurecido ordenou que ela fosse ralada em uma roda de tortura (uma roda com espigões que ia arrancando a carne da vítima aos poucos). 

Mas Deus fez com que a roda se quebrasse e Santa Catarina acabou sendo decapitada, mas em vez de sangue jorrou leite. 

Ao final, seu corpo foi transportado por anjos até o monte Sinai, aquele mesmo onde Charlton Heston recebeu os Dez Mandamentos fundamentais do livro sagrado dos hebreus.

Difícil de acreditar, né? Mas não para um cidadão medieval, onde o desconhecimento do mundo tornava tudo maravilhoso e crível.

O fato é que Catarina nunca existiu, nem o concurso de sábios, etc., etc.

Essa história foi criada para acobertar o assassinato de Hipátia, que era uma personalidade conhecida entre a intelectualidade contemporânea.

Quando a notícia de que Hipátiaa filósofa, matemática, astrônoma e diretora da mundialmente renomada Biblioteca havia sido esfolada viva em uma igreja por uma turba de cristãos enfurecidos, retalhada por cacos de conchas e pedaços de cerâmica em nome de Cristo no importante centro cultural de Alexandria, a história pegou muito mal para a igreja.

E a explicação dos sacerdotes para quem ficou horrorizado com a barbárie foi:"não, não foi bem assim, os cristãos são bonzinhos, na 'verdade' foi Catarina, uma mártir cristã que resistiu ao imperador malvado, tereré, tereré..."

Uma mentira repetida mil vezes torna-se uma verdade, já dizia o nazista Goebbels.

Por que Hipátia foi morta?

Porque tentou defender os direitos dos livres pensadores não cristãos diante da crescente opressão da ditadura religiosa talibanesca praticada por Cirilo, bispo de Alexandria. 

Cirilo era um cristão linha dura, chefe de uma milícia de 500 monges armados que impunham a fé cristã a todos que não queriam morrer ou serem expulsos da cidade.

Radical ao extremo, Cirilo recorreu a expedientes dignos dos bastidores de Brasília para impor seu ponto de vista sobre a cristandade. 

No Concílio de Éfeso, fundamental para determinar os rumos da igreja católica, Cirilo conseguiu a excomunhão de Nestório (um moderado) por não ter a mesma visão mística e radical.

Cirilo estabeleceu os dogmas da trindade (Deus é Um, mas é Três) e da concepção virginal e do parto virginal de Maria.

Seus adversários na época diziam que Cirilo era um "monstro, nascido e criado para a destruição da igreja"

Cirilo venceu, impôs seu ponto de vista e depois disso vieram as trevas.


A religião católica nasceu com a cunha cravada que iria resultar nos cismas e perseguições religiosas dos "hereges" que não aceitavam tal doutrina mística e incoerente.

Estava plantada a semente das guerras religiosas que ceifariam milhões de vidas na Europa mais de mil anos depois.

Pelo Vaticano, Cirilo é considerado um santo — São Cirilo — e um dos pilares da fé, doutor da igreja, um dos pais do catolicismo.

Por sua visão de mundo, pelas consequências de seus atos, receio que seus inimigos estivessem certos quanto a seu papel na formação da igreja...

Para finalizar, nem tudo é treva na postagem de hoje:



A Bibliotheca Alexandrina foi reconstruída no século 21 com a mesma proposta da original.

O que deixa um pouco de esperança para a humanidade é que sempre tentamos manter a chama do conhecimento acesa.

Não podemos deixar que essa chama seja apagada pelas turbas enfurecidas de bestas-feras desconhecedoras de que não estamos mais nos tempos da barbárie. 

Um abraço,

Jeff

Créditos das imagens / Para saber mais:
Croods: DreamWorks Animation
Buda destruído: http://www.timesofmalta.com/articles/view/20110311/world-news/unesco-plans-museum-for-destroyed-afghan-buddhas.354229
Biblioteca de Alexandria: http://factsanddetails.com/world/cat56/sub366/item2035.html
                  http://en.wikipedia.org/wiki/Library_of_Alexandria
Maionese do homem do inferno: http://www.umsabadoqualquer.com/
Catarina: http://pt.wikipedia.org/wiki/Catarina_de_Alexandria
Hipátia: http://pt.wikipedia.org/wiki/Hipátia
Cirilo: http://pt.wikipedia.org/wiki/Cirilo_de_Alexandria
Nova Biblioteca: http://pt.wikipedia.org/wiki/Bibliotheca_Alexandrina

Nenhum comentário:

Postar um comentário