quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

7. A incerteza do amanhã

Nesta bela cena, Eep tenta aproveitar o último raio de sol antes de ser obrigada a se trancar na caverna que ela tanto odeia. Em sua incerteza quanto ao amanhã, faz um pedido ao Sol para que volte no dia seguinte. Afinal, não havia nenhuma garantia de que a noite não iria durar para sempre se o sol não quisesse nascer novamente, ou se perdesse a batalha contra a noite; nas culturas antigas há vários mitos sobre essa eterna luta entre a luz e as trevas.


O fato é que os povos das cavernas não tinham ideias e conceitos sobre o mundo e a natureza tão claros como os que temos hoje. Aliás, eles não tinham conceito nenhum.

Para os povos primitivos, o Sol, a Lua e os fenômenos da natureza eram manifestações de entidades com poderes tremendos, deuses a cujos caprichos os humanos estavam submetidos.

Tudo era mistério e a única explicação(?) era dada pelos mais sábios(?) do grupo, aqueles que dominavam o contato com esses deuses, os xamãs. Nossos nativos os chamavam de pajés. As tempestades cessavam graças à sua intercessão junto ao deus da tempestade, como duvidar de seu poder?


Saber interpretar a vontade dos misteriosos deuses-animais-forças-da-natureza garantia aos xamãs um status privilegiado na tribo, que desde a infância aprendeu a temer e respeitar o sobrenatural.

O terror incutido nas crianças nos rituais de iniciação à vida adulta perduraria por toda a vida. Ninguém ousaria contrariar o incompreensível desígnio dos deuses por medo da punição divina. Mesmo os guerreiros mais valentes não ousariam desrespeitar os deuses e os xamãs, seus representantes.

E esse tipo de instituição vai adentrar o período que chamamos de histórico:


Na medida em que as comunidades humanas foram crescendo e se civilizando, os guerreiros mais espertos perceberam a conveniência de apoiar os xamãs e usar o temor às divindades em vez da força bruta para manter o povo na linha de acordo com seus interesses.

Era uma união muito conveniente:

Conforme a sociedade evoluía, os guerreiros espertos agora transformados em reis garantiam o sustento dos xamãs e suas dinastias/associações, agora chamados de sacerdotes e agregados à corte, e estes asseguravam o direito divino dos reis e suas dinastias, um perpetuando o poder do outro.

Sacerdote sumério, 2.200 a.C.
Desde as religiões mais primitivas, a forma encontrada para apaziguar os deuses eram os sacrifícios feitos por toda a população. Quer dizer, toda a população, menos os xamãs, que intermediavam as oferendas aos deuses.

E o que eram essas oferendas?

Coisas absolutamente necessárias ao(s) deus(es): alimentos, pedras e metais preciosos, objetos de bronze e ferro (que naquela época era valioso), gado, ou seja, todas as riquezas que o(s) deus(es) necessitava(m) para não perder(em) a paciência com os humanos. E para garantir a proteção divina dos lares, a aquisição de estatuetas vendidas ou abençoadas pelos próprios sacerdotes era fundamental.  

Todas essas riquezas intermediadas pelos xamãs/sacerdotes eram entregues pessoalmente em sua totalidade para o(s) deus(es), sem ficar com nada para si mesmos. É sério, até hoje tem quem acredite.

Os xamãs/sacerdotes sempre tiveram muito trabalho jogando o ouro e as joias para o alto a fim de que o(s) deus(es) recolhesse(m) a parte das oferendas que lhe(s) aprouvesse, o que o(s) deus(es) não pegasse(m) constituía a remuneração pelos serviços prestados à população crédula.

Sim, é tudo ouro.
Eles também tinham trabalho queimando as vísceras e partes dos animais para que o cheiro agradável chegasse às narinas do(s) deus(es). Naquela época isso se chamava ritual de sacrifício ou oferenda, hoje chamamos de ritual do churrasco.

Eventualmente, quando o(s) deus(es) estivesse(m) muito irado(s), ou alguns humanos fossem muito inconvenientes aos reis ou aos sacerdotes da corte, eram feitos sacrifícios humanos.

Se não fosse o anjo avisando que Deus trocava o sacrifício do filho pela ponta do seu bingolim, 
Abraão teria matado Isaac, mas milhões de prepúcios seriam salvos.
Para justificar essas práticas, as estórias contadas pelos sacerdotes explicavam a origem dos deuses e dos homens, provando que essa era a ordem natural desde o princípio dos tempos e restava ao povinho calar a boca e retribuir a proteção mafiosa divinal pagando o dízimo imposto, senão iam todos para o inferno, sem coca-cola.

A invenção da escrita se constituiu na benção e maldição da Humanidade.

Benção, porque permitiu transmitir o conhecimento ao longo dos milênios. Maldição, porque perpetuou costumes tribais do tempo das cavernas, como a mutilação genital, agora institucionalizados na forma de livros sagrados — nunca entendi porque uma entidade capaz de criar um Universo inteiro com bilhões de galáxias apenas com a força do pensamento de repente resolvia se engraçar com uma tribo em particular, deixando de lado toda a Humanidade, e colecionar seus prepúcios.

Mas livro sagrado não pode ser analisado, muito menos criticado, porque se você encontra alguma contradição humana naquele apanhado de lendas de várias tradições humanas apresentadas como a palavra incontestável do(s) deus(es), você é inimigo da fé e do Estado, pena de morte para você. Pelo menos foi assim ao longo da maior parte da História.

Bíblia provavelmente reproduzida e ilustrada à luz de lamparinas com pavio de cânhamo (Cannabis sativa).
Quando os hebreus incorporaram à sua literatura sagrada as tradições e lendas de vários povos mais antigos com os quais tiveram contato, como a lenda velha de milhares de anos do dilúvio da Suméria, as entidades aladas dos mitos da velha Babilônia e uma série de outras, perpetuaram para a civilização ocidental uma colcha de retalhos de relatos conflituosos e exemplos de moral estranha, que ainda são propalados e vendidos a bom preço como a “palavra da salvação” e a “vontade de Deus”, como se o conjunto de livros que compõem a Bíblia tivesse sido escrito com a própria mão de Deus e não com a mão dos homens.

Quer ver alguns exemplos desse caldeirão de culturas eternizado pelos hebreus?

Olha aí o maligno deus Apep dos antigos egípcios, chamado de Apófis pelos gregos. Apep era a serpente do mal, que aparece associada à Árvore Sagrada, para eles, o abacateiro:


Árvore Sagrada (aquela do Paraíso) que também era reverenciada pelos povos mesopotâmicos de quem os hebreus absorveram a cultura:


Taí a serpente associada à árvore sagrada de novo nesta tabuleta da Caldeia, terra de Abraão (aquele do Isaac e dos prepúcios), considerado o fundador do monoteísmo e, por extensão, do judaísmo, cristianismo e islamismo, três religiões pautadas no todo ou em parte pelo livro sagrado dos hebreus. 

Olha só que coisa: Abraão era filho de Terah, um sacerdote caldeu. E como filho de sacerdote, Abraão era também um sacerdote realizador de sacrifícios, capaz de degolar o próprio filho, não fosse o anjo brecá-lo. Mas ao romper com a religião antiga e emigrar da Caldeia para Canaã e depois para o Egito, Abraão foi apresentado como um simples pastor. Não era.

Voltando à serpente do Paraíso:

Após a expulsão de Adão e Eva, a serpente foi condenada a rastejar porque antes ela tinha asas e voava. Na mitologia egípcia.



E não só a serpente, mas outros habitantes do Paraíso muito nossos conhecidos também estão por toda parte nas culturas mais antigas da Mesopotâmia:


Acima, entidades voadoras mensageiras dos deuses junto à árvore sagrada. Amplie a imagem acima... reparou nos objetos que eles carregam nas mãos?

Não sei se algum arqueólogo atentou para isso, mas lanço uma teoria: eu desconfio que esses objetos sejam argolas para transporte de prepúcios, já que os hebreus não foram os inventores da prática; a circuncisão como sacrifício religioso já era praticada há muito tempo no Oriente Médio, do Egito à Mesopotâmia.

A adoração a essas figuras aladas na mitologia mesopotâmica é muito antiga. Esta tabuleta suméria tem cerca de 5 mil anos e retrata seus deuses (note a figura com asas) junto ao sagrado monte Ararat (aquele da arca do Noé). 



Eram representados como gigantes no céu porque os sacerdotes provavam sua existência reverenciando e mostrando ao povão as estrelas que se moviam no céu. Hoje chamamos essas estrelas móveis de planetas e Ishtar (aquela com asas) é nossa "estrela" matutina e vespertina, o planeta Vênus. 

Os montes Ararat eram sagrados para os sumérios, local de nascimento do deus-sol. Mas por que eram sagrados? 

O pequeno e o grande Ararat chamam a atenção por serem picos nevados, gêmeos, e pelo menos um deles era um vulcão ativo na época dos sumérios, daí o mito de ser o local de nascimento dos deuses. Veja a posição do sol na foto, Vênus pareceria nascer do monte igual na representação acima.
Os montes Sis e Masis, ou Pequeno e Grande Ararat
O Ararat era o lugar mais alto conhecido por aquele povo, então se você quisesse dar uma ideia de como subiram as águas do dilúvio, essa era a referência. 

Dilúvio, aliás, que foi contado em tabuletas de argila sumérias milhares de anos antes de ser incluído na Bíblia. Isso prova que o dilúvio realmente ocorreu? Não, isso prova apenas que o mito era antigo. 

E as figuras com asas aparecem novamente nesta reprodução de um painel assírio:

Note a figura à esquerda na imagem acima, é um detalhe mais nítido do painel em pedra abaixo que retrata o rei Assurbanípal (sentado no trono), de cerca de 650 a.C.



A criatura com asas está à esquerda no painel, ela e o sacerdote(?) estão dando as bênçãos celestiais ao rei guerreiro; já o quadro abaixo foi pintado por volta de 1750 e retrata o rei Luís XIV da França.


Percebeu a semelhança entre as imagens, as entidades voadoras presentes nas duas representações de reis?

Apesar dos 2.400 anos que separam as duas imagens, a mensagem passada ao povão é de que os reis contam com a bênção divina e a proteção dos anjos. Anjos que são anteriores ao cristianismo e até mesmo ao judaísmo, mas que sempre foram o símbolo das boas relações dos poderosos com o pessoal do andar lá de cima...

Os povos que acabaram de sair das cavernas para a vida comunal em aldeias e cidades não estavam em condição melhor do que os cavernícolas quanto ao conhecimento do mundo; sabiam nada de nada. Somente por volta de 500 a.C., na Grécia, é que alguns filósofos iriam começar a questionar a natureza física dos fenômenos atribuídos à ação dos deuses.

Mas essa iniciativa tímida de pensamento racional quase morreu sufocada por milhares de anos de dogmas religiosos impostos a ferro e fogo com base no livro sagrado dos hebreus, agora convertido no livro sagrado da civilização ocidental.


Giordano Bruno morreu em 1600. Foi um dos milhares e milhares de torturados e queimados vivos pela ‘santa inquisição' por desrespeitar a 'santa madre igreja’. 

Seu crime foi afirmar que a Terra é um planeta que gira em torno do Sol — a igreja dizia que o Sol girava em torno da Terra porque é isso que está na Bíblia. 

Giordano Bruno dizia que cada estrela é o sol de outros planetas semelhantes aos do nosso sistema solar. 

Giordano Bruno morreu porque estava totalmente certo e a Bíblia e a Igreja erradas.

Perdeu-se a conta dos milhares (ou milhões?) de pessoas assassinadas “em nome de Deus” por fazerem afirmações que poderiam abalar os alicerces das sociedades xamânicas/sacerdotais/ reais/imperiais que dominaram o mundo.

A incerteza do amanhã nas cavernas fez nascer a religião, uma técnica de dominação cultural tão eficaz que até hoje garante emprego bem remunerado para os que se autointitulam porta-vozes de Deus.

Para o bem e para o mal.

Um abraço,

Jeff

Créditos das imagens / Para saber mais:
Xamanismo: http://en.wikipedia.org/wiki/Shamanism
Estandarte de Ur: http://pt.wikipedia.org/wiki/Estandarte_de_Ur
Sacerdote sumério: http://arthistoryworlds.org/art-of-sumer/
Vaticano: http://foreverinhell.blogspot.com.br/2010/10/once-you-give-gift-its-not-yours.html
Abraão: http://es.wikipedia.org/wiki/Abraham
Circuncisão ritual: http://pt.wikipedia.org/wiki/Brit_milá
Bíblia: http://en.wikipedia.org/wiki/Bible
Apep ou Apófis: http://pt.wikipedia.org/wiki/Apep
Árvore sagrada da Caldeia: https://www.bookiejar.com/Content/Books/7ccbe2a1-12a9-41fa-a3ff-0f8ebaf40ef6/4419_r1/24654/www.gutenberg.org@files@24654@24654-h@24654-h-3.htm
Tabuleta suméria: http://www.gutenberg.org/files/16653/16653-h/16653-h.htm#id2523200
Monte Ararat: http://peopleofar.wordpress.com/category/folklore/
                       http://en.wikipedia.org/wiki/Mount_Ararat
Anjos: https://www.bookiejar.com/Content/Books/7ccbe2a1-12a9-41fa-a3ff-0f8ebaf40ef6/4419_r1/24654/www.gutenberg.org@files@24654@24654-h@24654-h-3.htm
Luís XIV: http://pt.wikipedia.org/wiki/Guerra_Franco-Holandesa
Giordano Bruno: http://pt.wikipedia.org/wiki/Giordano_Bruno
Inquisição católica: http://pt.wikipedia.org/wiki/Inquisição 

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

6. Lar, doce lar?

A caverna é o centro da vida dos Croods, pelo menos na primeira parte do filme. Ela é sua moradia e abrigo contra as feras da noite, onde gerações e gerações deixaram suas marcas de mãos e as regras simples de sobrevivência pintadas nas paredes.



Só que não é bem assim.

Os neandertais e os hominídeos que vieram antes deles deixaram evidências de sua passagem por cavernas, como ferramentas de pedra, e ossos, mas até o momento não temos evidências de nenhum tipo de pintura nas rochas atribuíveis a eles.



A caverna com arte rupestre mais antiga encontrada na Europa até agora é a de El Castillo, na Espanha. As pinturas foram datadas por espectrometria em 40.000 anos e atribuídas por alguns pesquisadores aos neandertais; mas foram feitas realmente por eles?



40 mil anos coincide com a chegada à Europa dos humanos modernos vindos da África. E esse estilo de pintura em muitas outras cavernas está claramente associado aos humanos modernos.
Cueva de Las Manos, Argentina, 'apenas' 9.300 anos
Os poucos indícios que associam neandertais com qualquer tipo de ornamentação, seja pintura rupestre, sejam enfeites de ossos, são suspeitos de erro de interpretação por parte dos arqueólogos. 

Seja porque humanos modernos ocuparam as mesmas cavernas e enterraram seus mortos perto dos defuntos neandertais que eles não sabiam que estavam lá embaixo, seja porque os ornamentos feitos por nossos antepassados foram arrastados por chuvas e se misturaram aos ossos de seus predecessores, o fato é que neandertais não parecem ter sido capazes de fazer qualquer tipo de atividade daquilo que hoje entendemos por arte.


Usar as paredes da caverna para contar estórias, como fazia o Grug, estava fora do alcance intelectual de um neandertal, mas não dos humanos modernos. Além do corpo atarracado, das feições brutas e da enorme força e resistência ao frio, essa era a diferença fundamental entre nós e eles, sua falta de capacidade de raciocínio abstrato.


As cavernas de Altamira e Lascaux estão repletas de representações de animais desenhados por nossos ancestrais recém-chegados da África que mostram uma capacidade não apenas de representação, mas também de síntese da informações essenciais para a compreensão do que está representado. Quanto ao significado além da representação, o motivo de criar a representação, nada sabemos.



As pinturas mais recentes feitas por humanos modernos podiam ser totalmente abstratas, com figuras geométricas e fantásticas inexistentes na natureza. E capacidade de abstração é nossa marca registrada, é a que nos permite imaginar e criar nossa tecnologia e arte.


Caverna Chumash, Santa Barbara, Califórnia
Nossos primos primitivos usavam a caverna como abrigo, local para fabricação de ferramentas de pedra e aproveitamento dos restos animais, como peles, ossos e chifres. 

Já nossos ancestrais humanos partiram para a construção de aldeias e palafitas de madeira. Altamira e Lascaux não se destinavam à moradia. Ao que tudo indica, essas cavernas e muitas outras contendo arte rupestre se destinavam a práticas religiosas, outra manifestação da criatividade humana. 

Há uma teoria de que as cavernas decoradas seriam locais de ritos de iniciação dos jovens, que para ingressar no mundo adulto (e isso já lá pelos 7 ou 8 anos, que se morria cedo naquela época), teriam de entrar sozinhos no útero da mãe-natureza e entregar uma oferenda ao deus/deusa-animal aterrador que lá morava.



Consegue imaginar o que seria para uma criança entrar sozinha em uma caverna enorme, rastejando por passagens estreitas com uma lamparina fraquinha (uma concha com um pavio de fibra em gordura animal, que vela ainda não existia), sem saber o que viria após o próximo passo, e se deparar com algo inimaginável, completamente diferente do que existia no mundo lá fora, imagens aterradoras de animais que se moviam conforme a fonte de luz?

Você consegue imaginar o impacto emocional ao fim do percurso, quando essa criança se deparava com uma entidade com cabeça de urso ou outro animal e a entidade sagrada se manifestava diretamente a ela, a submetia a um ritual, dava-lhe um nome e fazia-a renascer agora como uma pessoa adulta para a vida na comunidade?

OK, não é uma cabeça de urso, mas dá uma ideia.
Ao final do evento a criança seria recebida com festa pelo restante da tribo. Seria um teste de coragem, uma jornada inesquecível, um marco da entrada na vida adulta, um baile de debutantes para o ráigui soçáite cavernícola. 

Segundo essa teoria, essa seria a religião original e primitiva da humanidade pré-histórica, e evidências dessa associação entre humanos e deuses representados por animais teriam deixado sua marca nas religiões mais antigas da história:



Para nós esse conceito de deuses com cabeças de animais parece absurdo, mas os egípcios os reverenciaram por milhares de anos. O mesmo tipo de culto foi encontrado entre os nativos europeus pagãos antes da dominação pelo império romano. E até hoje.

Cernuno, divindade celta
Essa teoria pode explicar o porquê.

E pode explicar também como nas cavernas teria surgido a associação entre xamãs/sacerdotes e guerreiros/reis que criaria impérios como o egípcio, sumério, persa, romano, espanhol, português e por aí vai.

Semana que vem eu explico como.

Um abraço,

Jeff

Créditos das imagens / Para saber mais:
Croods: DreamWorks Animation
Ferramentas líiticas: http://www2.uol.com.br/sciam/reportagens/quando_o_mar_salvou_a_humanidade.html
Artes neandertais: http://www.sciencedaily.com/releases/2010/10/101026131252.htm
Dataçãoarqueológica: http://pt.wikipedia.org/wiki/Datação_como_ferramenta_de_pesquisa#M.C3.A9todos_com_Radioatividade
El Castillo: http://ansa.it/scienza/notizie/rubriche/terrapoli/2012/06/15/pitture-rupestri-Europa-piu-antiche-40-000-anni_7042624.html
                 http://pt.wikipedia.org/wiki/Caverna_de_El_Castillo
Cueva de las Manos: http://es.wikipedia.org/wiki/Cueva_de_las_Manos
Lascaux: http://pt.wikipedia.org/wiki/Lascaux
Altamira: http://pt.wikipedia.org/wiki/Caverna_de_Altamira
Chumash: http://en.wikipedia.org/wiki/Chumash_Painted_Cave_State_Historic_Park
Entidade com chifres: http://espelaion.blogspot.com.br/2012_03_01_archive.html
Suposta religião ancestral: http://atala.fr/2013/10/27/2-the-womb-of-the-shebear-the-matrix-of-the-universe-en/
Deuses egípcios: http://www.brasilescola.com/historiag/os-deuses-egipcios.htm
                         http://mariliacoltri.blogspot.com.br/2012/08/o-egito-antigo.html
Cernuno: http://mitographos.blogspot.com.br/2012/01/cernunnos.html
                http://pt.wikipedia.org/wiki/Cernuno

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

5. Clichês de trogloditas

Os Croods são neandertais retratados de acordo com alguns clichês que Hollywood ajuda a perpetuar, como o andar de gorila e o jeitão bruto e abestalhado.



Mas de onde surgiu essa ideia de que os neandertais seriam tão primitivos?

Tudo começou na segunda metade do século XIX, 19 para os íntimos.

Charles Darwin (grande pesquisador) havia acabado de publicar sua teoria da evolução das espécies por meio da seleção natural, prevendo que seriam encontrados fósseis de ancestrais primitivos tanto de humanos quanto de primatas. 

A propósito, Darwin nunca afirmou que o homem descende do macaco; o que ele disse é que tanto um quanto outro descendem de animais anteriores, numa sequência de ascendentes desde a origem da vida.


Não é o mais forte da espécie que sobrevive, nem o mais inteligente que sobrevive. 
É aquele que é mais adaptável à mudança, disse Charles Darwin.
Esse processo é muito mal explicado e muito mal compreendido; ao longo destas postagens, voltarei a comentar e tentarei explicar de maneira bem simples como a evolução acontece.

Voltando aos neandertais:

O fato é que crânios e esqueletos completos de neandertais foram os primeiros a serem encontrados na Europa, então o povo de antanho pensou que eles seriam o tal elo perdido entre homens e animais, e o desconhecimento científico e principalmente a imprensa (sempre ela) da época difundiram a imagem que retratou os neandertais como algo mais próximo a um gorila que a um humano, e essa visão do neandertal permanece no imaginário até hoje. 

A imagem que se tinha dos neandertais há 150 anos era bem mais primitiva do que a mostrada no filme:
Se esse aí fosse o Grug, não quero nem imaginar como seria a Eep.
Mas o que fez com que chegássemos a uma imagem mais humana dos neandertais?

Pesquisa científica, pesquisa científica, pesquisa científica.

O que sabemos sobre esses nossos parentes vem dos restos encontrados principalmente em cavernas: ossos de animais caçados, armas de pedra (pontas de lança, facas e machados de pedra) e os próprios esqueletos.

Há relativamente muitos esqueletos porque eles viviam em cavernas e cavernas são visadas para escavações arqueológicas, são bons locais de preservação e, até onde se sabe, os neandertais foram os primeiros a enterrarem seus mortos com oferendas.



Como sabemos que eles usavam peles de animais como agasalhos?

Bom, não sabemos de fato. Peles de animais normalmente não se fossilizam, nunca foram encontrados seus vestígios. 

Mas os neandertais viveram no mundo todo, inclusive na Europa durante a Era do Gelo, e fazia mais frio do que em São Joaquim em junho, então é lógico supor que eles se protegiam com fogueiras (os vestígios foram encontrados) e também peles de animais, porque ferramentas de pedra lascada para raspar o couro eles possuíam.

Roupas tecidas de verdade são obra do Homo sapiens sapiens e só iriam aparecer dezenas de milhares de anos depois.

Mas nem todos concordam com essa visão: há quem pense que eles não precisavam usar peles de animais, porque já teriam sua própria proteção peluda.


Copyright: themandus.org
Impressionante, né? Bem apropriado para um "documentário" do His Store Channel.

Há um livro e um site na internet, themandus (eles e nós) apresentando a teoria de que os neandertais eram muito, muito primitivos, verdadeiras bestas-feras quase inteligentes, predadores de humanos. Bichos piores do que velociraptores.

Segundo a teoria desse pessoal, os neandertais seriam a origem dos mitos dos trolls e ogros, mitos universais, muito populares na Europa medieval. Aliás, habitantes do folclore local no mundo todo desde tempos imemoriais.  
Oni, um Shrek do folclore japonês
A argumentação é interessante, mas se baseia em uma evidência questionável, pelo menos no que tange aos neandertais.

Seu maior pecado é argumentar com base nas técnicas de reconstrução facial (que é algo científico e crível) e distorcer a técnica sobrepondo o perfil de um chimpanzé ao crânio de um neandertal.


Copyright: themandus.org

Ao primeiro olhar, a correspondência parece convincente. Entretanto, para ser coerente, precisaria também comparar o perfil do chimpanzé ao crânio de um chimpanzé — olha ele aí:

Nas imagens, os crânios estão todos horizontais, mas a postura do chimpanzé não é a postura de um neandertal ou humano, o crânio fica ligeiramente inclinado para baixo. 


Ou seja, para ter um perfil de chimpanzé, seria necessário um crânio focinhudo de chimpanzé, coisa que os neandertais não tinham.

A partir do momento em que você argumenta alterando o ângulo de um e de outro para forçar o encaixe do crânio de neandertal no perfil do chimpanzé, você joga fora a credibilidade da reconstrução facial.
Esse é um grande perigo em tempos de internet. Os fatos podem ser distorcidos e, se você não tiver um conhecimento básico para separar o joio do trigo, pode até acabar sendo convencido de que o homem nunca esteve na Lua.

(Esteve sim, a argumentação em contrário é de quem não tem noção do que está falando, e qualquer dia eu crio um blog somente para mostrar como a falta de conhecimento pode levar as pessoas a falar muita besteira. Mas até lá, alguém é capaz de enviar sondas para os locais de pouso na Lua e quero ver como vai ficar a cara de quem hoje despeja sua ignorância vociferando [falando como fera]).

O fato é que durante toda a história da evolução humana, os grupos que melhor se adaptaram às mudanças tiveram que conviver com outros que não primavam pela inteligência, apenas pela força bruta. Como Darwin inteligentemente observou, estes últimos não sobreviveram.

E isso pode ter moldado esse mito/memória em nossos cérebros.

Os neandertais certamente tentaram defender seu território da invasão dos humanos, como é típico entre predadores que dependem da caça — agricultores e pastores cooperam entre si para aumentar a produção, já os caçadores/coletores disputam os recursos de um território. 

Bicho-papão, Curupira, Abominável Homem das Neves (Yeti), Pé-grande (Sasquatch), todas essas entidades monstruosas que assombram (ou assombraram) as crianças podem ter sido inspiradas por esse contato agressivo com hominídeos mais primitivos. 

Quanto aos neandertais, houve tribos mais primitivas e outras mais atrasadas, como em todas as etapas da evolução humana, e certamente nas histórias contadas ao redor das fogueiras, os neandertais foram retratados como bestas-feras a serem temidas.


Habitantes da Índia, segundo o alemão Münster, começo dos anos 1600
O mesmo fenômeno ocorreu em tempos bem mais recentes com nossos nativos americanos, com os nativos africanos, com os nativos australianos, enfim com os nativos do mundo todo, quando os nativos europeus saíram a explorar o mundo (em todos os sentidos): todos os povos nativos do restante do mundo foram retratados como animais selvagens merecedores da extinção ou escravização, simplesmente porque defendiam a manutenção de suas terras e culturas contra o interesse dos conquistadores. 

Mas voltando mais uma vez ao neandertais (prometo que é a última): 

Para formar a imagem dos neandertais em seu estágio final, entre 100 mil e 30 mil anos, época em que teriam vivido os Croods, eu fico com a pureza da resposta das crianças opinião dos cientistas:



Os últimos neandertais eram quase tão evoluídos quanto os humanos, menos por alguns detalhes...

Que eu só contarei na postagem da semana que vem.

Um abraço,

Jeff

Créditos das imagens / Para saber mais:
Croods: DreamWorks Animation
Charles Darwin: http://pt.wikipedia.org/wiki/Charles_Darwin
Neandertal século XIX: http://sciblogs.co.nz/bioblog/2010/10/31/killer-neandertals-does-this-one-really-stack-up/
Comportamento: http://en.wikipedia.org/wiki/Neanderthal_behavior
                            http://www.scilogs.eu/en/blog/biology-of-religion/2009-10-17/the-burials-of-neanderthals-religion-evolved-at-least-two-times
Funeral: http://io9.com/yes-neanderthals-did-bury-their-dead-1484417899
Neandertal troll: http://www.themandus.org/what_they_looked_like.html
Trolls: http://pt.wikipedia.org/wiki/Troll
Ogros: http://en.wikipedia.org/wiki/Ogre  (em inglês, porque a página em português é pífia)
Ogro do Japão: http://en.wikipedia.org/wiki/Oni
Yeti: http://en.wikipedia.org/wiki/Yeti
Sasquatch: http://en.wikipedia.org/wiki/Bigfoot
Münster: http://www.columbia.edu/itc/mealac/pritchett/00generallinks/munster/india/aa_india.html
Crânio de chimpanzé: http://www.talkorigins.org/faqs/homs/chimp.html

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

4. Uma família variada

Pois bem...

Vimos que os Croods vivem em pequenos grupos familiares, conheciam armas simples e conviveram com mamutes, então viveram há no máximo 100 mil anos.

Mas eles têm características muito primitivas: 



Frequentemente estão caminhando ou se apoiando sobre os quatro membros, Eep (nossa heroína) tem a agilidade de um gibão para escalar e subir em árvores, e o que é fundamental, eles ainda não conhecem o fogo.   

Com essas características, qual destes hominídeos corresponderia melhor aos Croods? 



Nesta imagem estão reconstruções faciais dos principais fósseis de hominídeos encontrados até o momento.

É um retrato de família de que mistura pelo menos 4 milhões de anos de evolução. 

Nesse tempo todo, muitos animais (e a partir de um momento muito especial, homens e mulheres) viveram e morreram, mas só uma parcela minúscula deixou traços de sua passagem pelo mundo em condições de serem encontrados por nós. 

Em que momento algum deles deixou de andar apoiado como um gorila e passou a caminhar ereto como um ser humano?

A análise dos ossos do calcanhar dos fósseis indica que foi um desses caras aqui: 



Os australopitecos foram os primeiros primatas que caminhavam eretos. O ancestral comum de humanos e chimpanzés que se apoiava nas mãos (ou seriam patas dianteiras?) já tinha ficado para trás.



Essa macaquinha baixinha, uma fêmea de Australopithecus afarensis, já caminhava muito bem, deixando as mãos livres para carregar frutas, raízes e o que mais conseguisse coletar. 

E se precisasse se defender, podia aplicar bordoadas com um bastão, que também podia ser usado para afastar e matar cobras. Isso aumentou muito a taxa de sobrevivência.

Chimpanzés e gorilas também podem usar bastões, orangotangos fazem camas ninhos no alto das árvores entrelaçando galhos, e até esse carinha aqui sabe quebrar cocos usando ferramentas de pedra, e ninguém ensinou para ele:



Os australopitecos também foram os pioneiros na fabricação de ferramentas de pedra lascada. 

A partir do momento que passou a lascar pedras, já não seriam mais australopitecos (macacos do sul) e sim um ser da família dos humanos, o Homo habilis (homem hábil)? 

Talvez essa controvérsia nunca se resolva, mas é mera questão de classificação. A descoberta de que vários primatas já usavam pedras como ferramentas é bastante recente, e esse critério deixou de ser tão importante.

O fato é que andar ereto foi um grande passo (perdoe o trocadilho) porque aumentou muito a mobilidade, ampliando as chances de sobrevivência e permitindo que filhotes melhor alimentados desenvolvessem cérebros maiores.

Como assim, cérebros maiores?

A capacidade craniana do australopiteco não era maior que a de um chimpanzé. 


Australopiteco, homem moderno e neandertal
Andar sobre duas pernas economiza energia e permite explorar áreas maiores. Ora, junte a capacidade de andar ereto e ver mais longe, a mãos capazes de segurar paus e pedras, e você passa a ter acesso a alimentos muito mais nutritivos: maior variedade de vegetais e, principalmente, tutano de ossos e cérebros de animais. Ou de inimigos, afinal proteína é proteína... 

A vida dos australopitecos não era fácil, mas a habilidade de usar ferramentas e armas permitia espantar os abutres de uma caça recém abatida (leões e leopardos já tinham feito o trabalho pesado).

Agora eles não dependiam mais só de frutas e raízes; era só chegar lá, aproveitar os restos de carne, quebrar os ossos ainda frescos e ingerir proteína de alta qualidade. 

Com mais proteínas à disposição, geração após geração cresceu no ventre com cérebros cada vez maiores, cérebros maiores aumentavam a chance de sobrevivência, os sobreviventes geravam descendentes que continuavam a ser melhor alimentados, até que esse cara aqui teve o grande estalo:


Não sei não, mas acho que esqueceram de colocar barba e bigode...
O Homo erectus aprendeu a dominar o fogo, a única característica que nos distingue de todos os outros animais. 

Golfinhos e elefantes têm autoconsciência (entendem que um espelho reflete sua própria imagem); até papagaios já foram filmados fabricando ferramentas, lascando madeira para alcançar sementes colocadas fora de seu alcance...

Dominar o fogo não significa gerá-lo: nosso ancestral precisava que a Natureza começasse um incêndio na savana (raios, faíscas de cascos de animais) para dar início ao processo, e depois manter o fogo vivo.

O fogo apagado representava a volta à vida difícil de sempre, e muito tempo podia se passar até obter novo fogo caso a fogueira do grupo se apagasse.



O filme A Guerra do Fogo, de 1981, conta uma história interessante e muito próxima de Os Croods: uma tribo primitiva perde a chama sagrada permanente e envia uma expedição para localizar algum incêndio natural, e no caminho encontra outras tribos mais e menos avançadas. 

Qualquer semelhança com Os Croods é mera 'conhecidência'.

Mas voltando a nossos ancestrais, um dia o Homo erectus fez algo melhor ainda: ele descobriu como fazer fogo sem precisar contar com a ajuda da Natureza. Vou falar sobre isso em detalhes mais adiante, conforme a sequência do filme.

Esse cara aí embaixo é o Homo heidelbergensis. Foi ele que chegou na Europa carregando o fogo, a primeira arma de destruição em massa da história da Humanidade. 


Ele foi o ancestral do Homo neanderthalensis, o homem de neandertal (Neanderthal é a cidade onde o fóssil foi encontrado). 


Os neandertais viveram entre 400 mil até 30 mil anos atrás, conviveram com mamutes e conheceram outro descendente mais esperto do Homo erectus que veio da África, um tal de Homo sapiens.



Houve um período em que neandertais e humanos modernos conviveram na Europa, Ásia e África. E recentemente se descobriu que remanescentes primitivos dos Homo erectus (o Homo floresiensis) viveram até bem pouco tempo atrás numa ilha isolada da Indonésia.

Durante algum tempo se pensou que três espécies de hominídeos andavam por este mundo até 30 mil anos atrás. Mas chegou-se à conclusão de que neandertais também eram Homo sapiens, conto isso futuramente. 

Bom, finalmente a pergunta que nos trouxe aqui foi respondida:

O filme Os Croods conta a história de uma família de neandertais.

Ao contrário do que é mostrado no filme, os neandertais caminhavam eretos, usavam armas como lanças e machados com pontas de pedra e conheciam o fogo.

Mas então por que eles são retratados de maneira tão diferente do que os neandertais realmente eram?

É o assunto da próxima postagem, até lá!

Um abraço,

Jeff

Créditos das imagens / Para saber mais:
Croods: DreamWorks Animation
Grupo de hominídeos: http://www.medicographia.com/2011/05/a-touch-of-france-new-life-for-old-bones-giving-a-face-to-lucy-king-tut-and-an-18th-century-shipwrecked-scientist/
Imagens de hominídeos: http://www.smithsonianmag.com/science-nature/a-closer-look-at-evolutionary-faces-8369070/
Macaco-prego: http://www.ip.usp.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=3994%3Aparticipacao-do-ipusp-no-programa-ciencias-sem-fronteiras-22112012&catid=44%3Anoticias&Itemid=95&lang=pt
Evolução do homem: http://en.wikipedia.org/wiki/Human_evolution
                               http://humanorigins.si.edu/evidence/human-fossils
Homo habilis: http://en.wikipedia.org/wiki/Homo_habilis
Guerra do Fogo: http://cinemahistoriaeducacao.wordpress.com/cinema-e-historia/pre-historia/a-guerra-do-fogo/
Neandertais: pt.wikipedia.org/wiki/Homem-de-neandertal
                    http://www.sciencedaily.com/releases/2011/03/110314152917.htm
Homo floresiensis: http://pt.wikipedia.org/wiki/Homo_floresiensis
Neandertal e humano moderno: http://www.medicographia.com/2011/05/a-touch-of-france-new-life-for-old-bones-giving-a-face-to-lucy-king-tut-and-an-18th-century-shipwrecked-scientist/