quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

7. A incerteza do amanhã

Nesta bela cena, Eep tenta aproveitar o último raio de sol antes de ser obrigada a se trancar na caverna que ela tanto odeia. Em sua incerteza quanto ao amanhã, faz um pedido ao Sol para que volte no dia seguinte. Afinal, não havia nenhuma garantia de que a noite não iria durar para sempre se o sol não quisesse nascer novamente, ou se perdesse a batalha contra a noite; nas culturas antigas há vários mitos sobre essa eterna luta entre a luz e as trevas.


O fato é que os povos das cavernas não tinham ideias e conceitos sobre o mundo e a natureza tão claros como os que temos hoje. Aliás, eles não tinham conceito nenhum.

Para os povos primitivos, o Sol, a Lua e os fenômenos da natureza eram manifestações de entidades com poderes tremendos, deuses a cujos caprichos os humanos estavam submetidos.

Tudo era mistério e a única explicação(?) era dada pelos mais sábios(?) do grupo, aqueles que dominavam o contato com esses deuses, os xamãs. Nossos nativos os chamavam de pajés. As tempestades cessavam graças à sua intercessão junto ao deus da tempestade, como duvidar de seu poder?


Saber interpretar a vontade dos misteriosos deuses-animais-forças-da-natureza garantia aos xamãs um status privilegiado na tribo, que desde a infância aprendeu a temer e respeitar o sobrenatural.

O terror incutido nas crianças nos rituais de iniciação à vida adulta perduraria por toda a vida. Ninguém ousaria contrariar o incompreensível desígnio dos deuses por medo da punição divina. Mesmo os guerreiros mais valentes não ousariam desrespeitar os deuses e os xamãs, seus representantes.

E esse tipo de instituição vai adentrar o período que chamamos de histórico:


Na medida em que as comunidades humanas foram crescendo e se civilizando, os guerreiros mais espertos perceberam a conveniência de apoiar os xamãs e usar o temor às divindades em vez da força bruta para manter o povo na linha de acordo com seus interesses.

Era uma união muito conveniente:

Conforme a sociedade evoluía, os guerreiros espertos agora transformados em reis garantiam o sustento dos xamãs e suas dinastias/associações, agora chamados de sacerdotes e agregados à corte, e estes asseguravam o direito divino dos reis e suas dinastias, um perpetuando o poder do outro.

Sacerdote sumério, 2.200 a.C.
Desde as religiões mais primitivas, a forma encontrada para apaziguar os deuses eram os sacrifícios feitos por toda a população. Quer dizer, toda a população, menos os xamãs, que intermediavam as oferendas aos deuses.

E o que eram essas oferendas?

Coisas absolutamente necessárias ao(s) deus(es): alimentos, pedras e metais preciosos, objetos de bronze e ferro (que naquela época era valioso), gado, ou seja, todas as riquezas que o(s) deus(es) necessitava(m) para não perder(em) a paciência com os humanos. E para garantir a proteção divina dos lares, a aquisição de estatuetas vendidas ou abençoadas pelos próprios sacerdotes era fundamental.  

Todas essas riquezas intermediadas pelos xamãs/sacerdotes eram entregues pessoalmente em sua totalidade para o(s) deus(es), sem ficar com nada para si mesmos. É sério, até hoje tem quem acredite.

Os xamãs/sacerdotes sempre tiveram muito trabalho jogando o ouro e as joias para o alto a fim de que o(s) deus(es) recolhesse(m) a parte das oferendas que lhe(s) aprouvesse, o que o(s) deus(es) não pegasse(m) constituía a remuneração pelos serviços prestados à população crédula.

Sim, é tudo ouro.
Eles também tinham trabalho queimando as vísceras e partes dos animais para que o cheiro agradável chegasse às narinas do(s) deus(es). Naquela época isso se chamava ritual de sacrifício ou oferenda, hoje chamamos de ritual do churrasco.

Eventualmente, quando o(s) deus(es) estivesse(m) muito irado(s), ou alguns humanos fossem muito inconvenientes aos reis ou aos sacerdotes da corte, eram feitos sacrifícios humanos.

Se não fosse o anjo avisando que Deus trocava o sacrifício do filho pela ponta do seu bingolim, 
Abraão teria matado Isaac, mas milhões de prepúcios seriam salvos.
Para justificar essas práticas, as estórias contadas pelos sacerdotes explicavam a origem dos deuses e dos homens, provando que essa era a ordem natural desde o princípio dos tempos e restava ao povinho calar a boca e retribuir a proteção mafiosa divinal pagando o dízimo imposto, senão iam todos para o inferno, sem coca-cola.

A invenção da escrita se constituiu na benção e maldição da Humanidade.

Benção, porque permitiu transmitir o conhecimento ao longo dos milênios. Maldição, porque perpetuou costumes tribais do tempo das cavernas, como a mutilação genital, agora institucionalizados na forma de livros sagrados — nunca entendi porque uma entidade capaz de criar um Universo inteiro com bilhões de galáxias apenas com a força do pensamento de repente resolvia se engraçar com uma tribo em particular, deixando de lado toda a Humanidade, e colecionar seus prepúcios.

Mas livro sagrado não pode ser analisado, muito menos criticado, porque se você encontra alguma contradição humana naquele apanhado de lendas de várias tradições humanas apresentadas como a palavra incontestável do(s) deus(es), você é inimigo da fé e do Estado, pena de morte para você. Pelo menos foi assim ao longo da maior parte da História.

Bíblia provavelmente reproduzida e ilustrada à luz de lamparinas com pavio de cânhamo (Cannabis sativa).
Quando os hebreus incorporaram à sua literatura sagrada as tradições e lendas de vários povos mais antigos com os quais tiveram contato, como a lenda velha de milhares de anos do dilúvio da Suméria, as entidades aladas dos mitos da velha Babilônia e uma série de outras, perpetuaram para a civilização ocidental uma colcha de retalhos de relatos conflituosos e exemplos de moral estranha, que ainda são propalados e vendidos a bom preço como a “palavra da salvação” e a “vontade de Deus”, como se o conjunto de livros que compõem a Bíblia tivesse sido escrito com a própria mão de Deus e não com a mão dos homens.

Quer ver alguns exemplos desse caldeirão de culturas eternizado pelos hebreus?

Olha aí o maligno deus Apep dos antigos egípcios, chamado de Apófis pelos gregos. Apep era a serpente do mal, que aparece associada à Árvore Sagrada, para eles, o abacateiro:


Árvore Sagrada (aquela do Paraíso) que também era reverenciada pelos povos mesopotâmicos de quem os hebreus absorveram a cultura:


Taí a serpente associada à árvore sagrada de novo nesta tabuleta da Caldeia, terra de Abraão (aquele do Isaac e dos prepúcios), considerado o fundador do monoteísmo e, por extensão, do judaísmo, cristianismo e islamismo, três religiões pautadas no todo ou em parte pelo livro sagrado dos hebreus. 

Olha só que coisa: Abraão era filho de Terah, um sacerdote caldeu. E como filho de sacerdote, Abraão era também um sacerdote realizador de sacrifícios, capaz de degolar o próprio filho, não fosse o anjo brecá-lo. Mas ao romper com a religião antiga e emigrar da Caldeia para Canaã e depois para o Egito, Abraão foi apresentado como um simples pastor. Não era.

Voltando à serpente do Paraíso:

Após a expulsão de Adão e Eva, a serpente foi condenada a rastejar porque antes ela tinha asas e voava. Na mitologia egípcia.



E não só a serpente, mas outros habitantes do Paraíso muito nossos conhecidos também estão por toda parte nas culturas mais antigas da Mesopotâmia:


Acima, entidades voadoras mensageiras dos deuses junto à árvore sagrada. Amplie a imagem acima... reparou nos objetos que eles carregam nas mãos?

Não sei se algum arqueólogo atentou para isso, mas lanço uma teoria: eu desconfio que esses objetos sejam argolas para transporte de prepúcios, já que os hebreus não foram os inventores da prática; a circuncisão como sacrifício religioso já era praticada há muito tempo no Oriente Médio, do Egito à Mesopotâmia.

A adoração a essas figuras aladas na mitologia mesopotâmica é muito antiga. Esta tabuleta suméria tem cerca de 5 mil anos e retrata seus deuses (note a figura com asas) junto ao sagrado monte Ararat (aquele da arca do Noé). 



Eram representados como gigantes no céu porque os sacerdotes provavam sua existência reverenciando e mostrando ao povão as estrelas que se moviam no céu. Hoje chamamos essas estrelas móveis de planetas e Ishtar (aquela com asas) é nossa "estrela" matutina e vespertina, o planeta Vênus. 

Os montes Ararat eram sagrados para os sumérios, local de nascimento do deus-sol. Mas por que eram sagrados? 

O pequeno e o grande Ararat chamam a atenção por serem picos nevados, gêmeos, e pelo menos um deles era um vulcão ativo na época dos sumérios, daí o mito de ser o local de nascimento dos deuses. Veja a posição do sol na foto, Vênus pareceria nascer do monte igual na representação acima.
Os montes Sis e Masis, ou Pequeno e Grande Ararat
O Ararat era o lugar mais alto conhecido por aquele povo, então se você quisesse dar uma ideia de como subiram as águas do dilúvio, essa era a referência. 

Dilúvio, aliás, que foi contado em tabuletas de argila sumérias milhares de anos antes de ser incluído na Bíblia. Isso prova que o dilúvio realmente ocorreu? Não, isso prova apenas que o mito era antigo. 

E as figuras com asas aparecem novamente nesta reprodução de um painel assírio:

Note a figura à esquerda na imagem acima, é um detalhe mais nítido do painel em pedra abaixo que retrata o rei Assurbanípal (sentado no trono), de cerca de 650 a.C.



A criatura com asas está à esquerda no painel, ela e o sacerdote(?) estão dando as bênçãos celestiais ao rei guerreiro; já o quadro abaixo foi pintado por volta de 1750 e retrata o rei Luís XIV da França.


Percebeu a semelhança entre as imagens, as entidades voadoras presentes nas duas representações de reis?

Apesar dos 2.400 anos que separam as duas imagens, a mensagem passada ao povão é de que os reis contam com a bênção divina e a proteção dos anjos. Anjos que são anteriores ao cristianismo e até mesmo ao judaísmo, mas que sempre foram o símbolo das boas relações dos poderosos com o pessoal do andar lá de cima...

Os povos que acabaram de sair das cavernas para a vida comunal em aldeias e cidades não estavam em condição melhor do que os cavernícolas quanto ao conhecimento do mundo; sabiam nada de nada. Somente por volta de 500 a.C., na Grécia, é que alguns filósofos iriam começar a questionar a natureza física dos fenômenos atribuídos à ação dos deuses.

Mas essa iniciativa tímida de pensamento racional quase morreu sufocada por milhares de anos de dogmas religiosos impostos a ferro e fogo com base no livro sagrado dos hebreus, agora convertido no livro sagrado da civilização ocidental.


Giordano Bruno morreu em 1600. Foi um dos milhares e milhares de torturados e queimados vivos pela ‘santa inquisição' por desrespeitar a 'santa madre igreja’. 

Seu crime foi afirmar que a Terra é um planeta que gira em torno do Sol — a igreja dizia que o Sol girava em torno da Terra porque é isso que está na Bíblia. 

Giordano Bruno dizia que cada estrela é o sol de outros planetas semelhantes aos do nosso sistema solar. 

Giordano Bruno morreu porque estava totalmente certo e a Bíblia e a Igreja erradas.

Perdeu-se a conta dos milhares (ou milhões?) de pessoas assassinadas “em nome de Deus” por fazerem afirmações que poderiam abalar os alicerces das sociedades xamânicas/sacerdotais/ reais/imperiais que dominaram o mundo.

A incerteza do amanhã nas cavernas fez nascer a religião, uma técnica de dominação cultural tão eficaz que até hoje garante emprego bem remunerado para os que se autointitulam porta-vozes de Deus.

Para o bem e para o mal.

Um abraço,

Jeff

Créditos das imagens / Para saber mais:
Xamanismo: http://en.wikipedia.org/wiki/Shamanism
Estandarte de Ur: http://pt.wikipedia.org/wiki/Estandarte_de_Ur
Sacerdote sumério: http://arthistoryworlds.org/art-of-sumer/
Vaticano: http://foreverinhell.blogspot.com.br/2010/10/once-you-give-gift-its-not-yours.html
Abraão: http://es.wikipedia.org/wiki/Abraham
Circuncisão ritual: http://pt.wikipedia.org/wiki/Brit_milá
Bíblia: http://en.wikipedia.org/wiki/Bible
Apep ou Apófis: http://pt.wikipedia.org/wiki/Apep
Árvore sagrada da Caldeia: https://www.bookiejar.com/Content/Books/7ccbe2a1-12a9-41fa-a3ff-0f8ebaf40ef6/4419_r1/24654/www.gutenberg.org@files@24654@24654-h@24654-h-3.htm
Tabuleta suméria: http://www.gutenberg.org/files/16653/16653-h/16653-h.htm#id2523200
Monte Ararat: http://peopleofar.wordpress.com/category/folklore/
                       http://en.wikipedia.org/wiki/Mount_Ararat
Anjos: https://www.bookiejar.com/Content/Books/7ccbe2a1-12a9-41fa-a3ff-0f8ebaf40ef6/4419_r1/24654/www.gutenberg.org@files@24654@24654-h@24654-h-3.htm
Luís XIV: http://pt.wikipedia.org/wiki/Guerra_Franco-Holandesa
Giordano Bruno: http://pt.wikipedia.org/wiki/Giordano_Bruno
Inquisição católica: http://pt.wikipedia.org/wiki/Inquisição 

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